
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Série internacional liderada por pesquisadores da USP revela salto de 10% para 23% no consumo nacional desde os anos 1980 e relaciona expansão da indústria ultraprocessada ao avanço das doenças crônicas no mundo
Caso de Política | Luís Carlos Nunes – O consumo de alimentos ultraprocessados no Brasil mais que dobrou nas últimas quatro décadas, passando de 10% para 23% da alimentação total, segundo uma série de artigos publicada por mais de 40 cientistas na revista The Lancet. O trabalho, coordenado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), compila dados de 93 países e revela que a tendência de alta é praticamente universal — só o Reino Unido registrou estabilidade, permanecendo em um patamar elevado de 50%.
A análise mostra que os ultraprocessados já compõem mais da metade da dieta dos norte-americanos e seguem em expansão acelerada em países de renda média e baixa, onde o consumo partia de bases menores. Ao longo de 30 anos, a participação desses produtos triplicou na Espanha e na Coreia do Sul e saltou de 3,5% para 10,4% na China. Na Argentina, a evolução foi mais moderada, mas ainda assim significativa, subindo de 19% para 29%.
Para Carlos Monteiro, pesquisador do Nupens/USP e líder da publicação, a expansão não é fruto de mudanças espontâneas de comportamento, mas de um processo estruturado da indústria global de alimentos. Ele aponta o papel de grandes corporações que priorizam produtos altamente lucrativos, apoiadas por estratégias intensivas de marketing e lobby político, dificultando o avanço de políticas públicas voltadas à alimentação saudável.
Renda, cultura e globalização
Os estudos indicam que o crescimento ocorre em países de todos os níveis de renda, mas segue lógicas distintas. Nações mais ricas já tinham consumo elevado e avançaram de forma mais lenta; já os países de renda média e baixa registraram saltos proporcionais maiores. Dentro das próprias sociedades, o padrão se repete: primeiro, o consumo cresce entre pessoas de maior renda e, depois, se dissemina entre outros grupos sociais.
A equipe ressalta, porém, que não se trata apenas de renda. Fatores culturais continuam a desempenhar papel relevante. Países ricos como Canadá exibem taxas altas, acima de 40%, enquanto Itália e Grécia permanecem abaixo de 25% devido à força de hábitos culinários tradicionais.
O relatório destaca ainda que o fenômeno ganhou escala global a partir dos anos 1980, apoiado na internacionalização das cadeias produtivas e na oferta massiva de produtos duráveis, baratos e prontos para consumo. O avanço dos ultraprocessados acompanha, no mesmo período, a escalada das taxas de obesidade e doenças crônicas, como diabetes tipo 2, câncer colorretal e enfermidades inflamatórias.
Riscos confirmados pela ciência
A revisão sistemática realizada pelos pesquisadores reuniu 104 estudos de longo prazo; em 92 deles, houve associação direta entre alto consumo de ultraprocessados e aumento do risco de doenças crônicas. As evidências incluem maior ingestão calórica, pior qualidade nutricional e maior exposição a aditivos como corantes, aromatizantes e emulsificantes – substâncias ligadas à inflamação e ao desequilíbrio metabólico.
Para os cientistas, o peso das evidências já sustenta ações urgentes de saúde pública. Eles afirmam que postergar medidas regulatórias apenas ampliará o impacto sobre a saúde das populações, sobretudo em países onde os ultraprocessados já se tornaram a base da alimentação cotidiana.
O que são ultraprocessados?
A definição usada pelos pesquisadores segue a classificação NOVA, criada em 2009 por especialistas brasileiros. O sistema divide alimentos em quatro grupos:
- In natura ou minimamente processados, como frutas, legumes, carnes, peixes e cereais;
- Ingredientes processados, como açúcar, óleo e sal;
- Alimentos processados, como enlatados, queijos e pães simples;
- Ultraprocessados, que combinam ingredientes baratos, aditivos químicos e técnicas industriais avançadas para criar produtos altamente palatáveis, duráveis e prontos para consumo – como biscoitos recheados, refrigerantes, macarrão instantâneo e iogurtes saborizados.
Segundo Monteiro, a classificação ajuda a entender como o processamento industrial deixou de se concentrar na preservação de alimentos e passou a produzir substitutos artificiais de alimentos tradicionais, contribuindo para a expansão da obesidade.
Recomendações e estratégias de regulação
Os estudos sugerem que políticas públicas precisam acompanhar a velocidade do avanço da indústria. Entre as recomendações dos pesquisadores estão:
- Sinalização explícita de aditivos nas embalagens, incluindo corantes e aromatizantes;
- Proibição de ultraprocessados em escolas e hospitais, como já ocorre no Brasil por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que amplia a oferta de alimentos frescos;
- Restrições à publicidade, sobretudo a direcionada ao público infantil;
- Sobretaxação de ultraprocessados, com a receita revertida para subsidiar alimentos in natura destinados a famílias de baixa renda.
O grupo também reforça que o avanço dos ultraprocessados não deve ser interpretado como responsabilidade individual. O relatório destaca o papel dominante das grandes multinacionais, cuja receita conjunta supera US$ 1,9 trilhão ao ano. Segundo os autores, esse poder econômico se traduz em influência política e capacidade de moldar sistemas alimentares inteiros, impactando escolhas, mercados e hábitos alimentares em escala global.
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