
Proposta para “premiar” denúncias de descarte irregular de lixo, atualmente em tramitação, nasce sob o peso esmagador da inconstitucionalidade, transformando boa intenção em piada jurídica e jogando a bola da conscientização para a lata
Caso de Política | Luís Carlos Nunes – Em um ato que misturou ousadia e uma dose generosa de desconhecimento jurídico, a Câmara Municipal de Barreiras tem em tramitação, atualmente, o Projeto de Lei nº 232/2025, batizado de “Olho no Lixo”. A proposta, apresentada pela vereadora Carmélia da Mata (PP), possuía como nobre objetivo combater o crônico problema do descarte irregular de resíduos na cidade.
Embora os municípios tenham, em princípio, competência para legislar sobre assuntos de interesse local e proteção do meio ambiente (conforme Art. 30, I, e Art. 23, VI, e Art. 30, V, da Constituição Federal), o problema central reside no mecanismo proposto. Na prática, o sistema central – a premiação de “dedo-duros” anônimos que flagrassem infratores – garante que essa “iniciativa inovadora” já nasça sob uma pesada sombra de inconstitucionalidade, configurando-se, para o bem ou para o mal, natimorta nas salas do legislativo.
O “corpo” legal do projeto prevê a criação de um “sistema de recompensas” (Art. 3º) para quem denunciasse o sujão de plantão, com o anonimato garantido (§ 1º do Art. 3º) e o prêmio condicionado à multa aplicada. É a velha máxima “faça justiça com as próprias mãos… e com o celular”, mas agora com bônus financeiro.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF), com a sobriedade de um lixeiro que sabe o que é entulho, já consolidou um entendimento que desaboa como um caminhão de lixo sobre tal artifício: denúncias anônimas, por si só, não podem servir de base exclusiva para instauração de procedimentos que gerem punição. A Constituição Federal é taxativa ao garantir o Princípio do Devido Processo Legal (Art. 5º, LIV) e o da Ampla Defesa e do Contraditório (Art. 5º, LV). Em bom português jurídico: ninguém pode ser multado por uma “fofoca” sem rosto, por mais fotogênica que seja.
A ironia atinge seu pico. Se uma multa administrativa for aplicada unicamente com base em denúncia anônima, o acusado fica impossibilitado de confrontar seu “caçador de recompensa”, questionar a credibilidade da denúncia ou a origem das provas. Isso abre uma verdadeira caixa de pandora para abusos e falsas acusações, incentivando um comportamento que, em sua essência, já corrompe o conceito de cidadania vigilante para o de puro oportunismo.
É um sistema que remunera cidadãos por “vigiar” e denunciar outros, de forma anônima, podendo ser visto como antiético e contrário à moralidade pública, além de desvirtuar o papel da fiscalização. Afinal, por que focar em educar quando se pode apenas pagar para delatar?
Nesse cenário, a proposta ignora – ou é ignorada por – sólidos precedentes da mais alta corte do país.
A jurisprudência do STF é claríssima sobre os limites da denúncia anônima. No julgamento do Inquérito (Inq) 1.957/PR (Relator: Min. Carlos Velloso), o Ministro Celso de Mello, em seu voto paradigmático, já sentenciava:
“O artigo 5º, item IV, da Constituição Federal garante a livre manifestação do pensamento, mas veda o anonimato. A carta anônima… não pode, portanto, movimentar polícia e justiça sem afrontar a aludida norma constitucional.”
(Voto do Min. Celso de Mello no Inq 1957/PR – Transcrições do Informativo STF nº 393, 20 a 24 de junho de 2005). Para detalhes sobre o Inq 1.957/PR, acesse: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2148784
Este entendimento, facilmente verificável em bases de dados jurídicas como o Portal do STF, é corroborado por outros precedentes importantes.
O Habeas Corpus (HC) 106.195/DF (Relator: Min. Gilmar Mendes) reforça a necessidade de investigações preliminares. Consulte: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4238500
E o Habeas Corpus (HC) 95.244/SP (Relatora: Min. Ellen Gracie) reafirma a necessidade de que a denúncia anônima seja confirmada por outros meios de prova antes de qualquer medida coercitiva. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2665046
Esses julgados deixam claro que a denúncia anônima é, no máximo, uma “notitia criminis inanimada” – um rumor sem dono – que exige uma verificação prévia e independente por parte das autoridades competentes. A autoridade municipal não pode simplesmente aplicar a multa com base na denúncia. Ela teria o dever de realizar uma fiscalização in loco e produzir suas próprias provas.
Só assim a multa se tornaria válida e, hipoteticamente, a “recompensa” justificada – mas aí, qual seria o verdadeiro mérito do “dedo-duro”? Sem essa clareza na regulamentação, o programa corre o risco de ser judicializado e ter o sistema de denúncia anônima com recompensa declarado inconstitucional.
Barreiras, afinal, não precisa de uma “delação premiada do lixo”, que pode incitar inimizades e denúncias falsas. Precisa de campanhas educativas maciças (como, aliás, preconiza o próprio Art. 2º do projeto), investimento em reciclagem, aumento da frequência da coleta e uma fiscalização de verdade, transparente e legitimada, feita pelos órgãos competentes, agindo de forma impessoal e moral – Princípio da Impessoalidade e Moralidade Administrativa.
A lição que fica do “Olho no Lixo” é que a melhor forma de combater o descarte irregular não é premiando o “dedo-duro”, mas conscientizando o “bom vizinho”. O caminho da eficácia e da constitucionalidade, felizmente, passa longe da delegacia e das recompensas por “furos”, seguindo o entendimento cristalino de nossa Constituição e da jurisprudência do STF.
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