
Luís Carlos Nunes – Jorge Ben Jor, em 1974, cantou a chegada dos alquimistas com uma cadência confiante de um futuro inevitável. Havia na música uma pulsação orgânica e irresistível que era, em si, uma promessa de ordem e transformação. A interação entre os instrumentos criava uma força coesa, um balanço que empurrava tudo para frente de forma hipnótica e inabalável. Ouvir essa canção hoje é um ato de arqueologia sônica. Aquele balanço profético, aquela força rítmica que parecia poder organizar o mundo, soa hoje como uma relíquia de um tempo em que a esperança ainda era uma matéria-prima abundante.
O nosso tempo não possui essa pulsação vital e coesa; em seu lugar, restou a arritmia, uma cacofonia de notificações, certezas conflitantes e pânicos fabricados.
Se os alquimistas estão, de fato, chegando, eles não encontram um mundo à espera de transmutação. Encontram um laboratório global que opera a anti-alquimia: um sistema desenhado com precisão para transformar ouro em chumbo. O ouro da atenção humana, da criatividade, da introspecção e da complexidade é sistematicamente triturado e convertido no chumbo opaco dos dados, dos cliques, do engajamento mensurável e da raiva monetizada.
E Hermes Trismegisto, o Três Vezes Grande, o que sentiria ao ver seu legado? Ele, que ensinou “o que está embaixo é como o que está em cima”, veria seu princípio sagrado transformado em uma paródia profana. O “em cima” não é mais o cosmos divino, mas a Nuvem, a arquitetura de dados, a mente-colmeia algorítmica. E o “embaixo”, o ser humano, tornou-se seu distorcido e pixelado reflexo: fragmentado, reativo, ansioso. Hermes veria o seu preceito de que “O Todo é Mente” profanado por uma realidade onde a Mente foi terceirizada para servidores em data centers, e a busca pela gnose foi substituída pelo scroll infinito. Ele não sentiria a serenidade de um mestre, mas o horror de um criador que vê sua arte — a transmutação ascendente da alma — invertida num mecanismo industrial de sua degradação.
Nesse cenário, o alquimista contemporâneo não pode ser o sábio sereno da canção de Jorge Ben. Ele é, por necessidade, uma figura caótica, um guerrilheiro filosófico, um hacker da percepção. Seu trabalho não é construir, mas sabotar. Ele não anuncia sua chegada porque sua principal ferramenta é a invisibilidade. Sua perseverança não é a do artesão paciente, mas a do anticorpo que luta para não ser aniquilado pelo sistema que o hospeda.
Seu laboratório é uma fortaleza sitiada: a própria consciência. Suas ferramentas são firewalls mentais, filtros de ceticismo radical e a disciplina ascética de cultivar o silêncio em meio à gritaria. Eles não usam a “cabeça, a ciência e a fé” para criar uma nova ordem, mas para forjar uma zona autônoma de pensamento dentro de uma arquitetura de controle cognitivo.
E a Pedra Filosofal? A busca já não é por uma verdade universal que ilumine o mundo. Isso seria de uma arrogância ingênua. A Pedra Filosofal de hoje é algo muito mais raro e subversivo: a capacidade de manter um foco sustentado. É o poder de formular uma pergunta complexa e resistir à tentação de uma resposta simplista do Google. É a integridade de uma consciência não-hackeada, o luxo supremo de ser dono do próprio fluxo de pensamento.
Aquela alma rítmica, a pulsação vital que Jorge Ben imortalizou, ainda existe, mas não como a trilha sonora do mundo. Ela se tornou o sinal secreto, a frequência de rádio pirata que esses novos alquimistas buscam sintonizar. Eles não estão chegando para nos salvar. Estão apenas tentando provar que, mesmo quando tudo ao redor é projetado para nos transformar em chumbo, a transmutação em ouro, por mais impossível que pareça, ainda é o único ato que justifica a existência.